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  • Foto do escritorFilipe Tasbiat

Antes das seis



Eu devia ter desconfiado, o gato tinha passado furtivamente pelo jardim mais cedo. Magrinho de doer, mesclado, com uma cicatriz no focinho. Arruinou o piquenique. Saltou por cima da toalha e abocanhou um pedaço de queijo. Um ataque magistral do larápio. Estraçalhou a tortinha de maçã; a cauda chicoteou a garrafa do suco, que deu um banho na Diná. Ela soltou um gritinho, mas logo começou a rir. “Esse é o encontro divino que me prometeu, Ulisses?”, quis saber, e estava no direito dela – apesar de eu nunca ter dito que seria divino. Foi bobagem fazer aquela promessa de “primeiro encontro dos sonhos”. Sim, sonhos, foi esta a palavra que usei. Estava mais pra pesadelo. Era melhor acabar logo com aquilo. Recolher a bagunça e finalizar com um cumprimento de mãos, ligeiro, nada muito formal, pra não prolongar o constrangimento.


Felino safado, estragou tudo. Ele voltou, o desavergonhado. Veio rondando, com os olhos chispados, farejando os cubos de presunto que não conseguiu devorar no primeiro ataque. Diná e eu levantamos acampamento (duas horas antes do que previ). Eu teria que dar um passeio antes de voltar pra casa. Imagine chegar antes das seis!... e encher o tanque de piadinhas do Hugo com uns litros de humilhação aditivada, pura, da boa. Eu, não. Agora, a Diná ia devolvendo as frutas ao cesto. Apanhei a toalha da grama e sacudi, tentando disfarçar o imprestável que era com dobraduras de toda e qualquer natureza. Por que não fiquei com as frutas e o cesto? Bobice, eu sei. O pano, ainda por cima, estava ensopado do suco de graviola. Que erro. Não o do gato. O meu. Afinal, suco de graviola? Que romântico. Tão romântico quanto ser atacado por um gato esfomeado.


Aliás, lá vinha ele, o malhado, do pelo mesclado, feio de dar dó, aproximando-se sorrateiro, mostrando os dentes, querendo intimidar. “Toma aí esse presunto, ô seu feio”, arremessei uns cubos pro danado. Pelo menos a Diná me deu um beijinho antes de ir embora. Na bochecha, mas achei melhor do que um aperto de mãos. Pedi desculpas pelo desastre e desejei a ela cousas prósperas — a

Diná adorava literatura do século 19 e gostava de falar as “cousas” como eram ditas antigamente. Ela riu e disse que eu era engraçado. Chamou o gato feio e disse “Bom trabalho, meu lindo”. Pôs o cesto no braço e se despediu. E eu voltei pra casa, meio borocoxô, meio aliviado. Eu que não ia querer namorar a dona daquele gato.

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