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  • Foto do escritorFilipe Tasbiat

Drones



— Drone — disse o homem, apontando para o céu.


Por força do instinto, apressou-se de volta ao tabuleiro de pedra da praça e recolheu os singelos botões que usava como peças de damas. Encheu os bolsos. Sem muita cerimônia, despediu-se de seu adversário, um senhorzinho aposentado, idosíssimo, que, em vias de declarar vitória pela terceira partida consecutiva, não escondeu o desapontamento com aquela interrupção abrupta do jogo.


A competição tinha acabado, mas o primeiro homem não foi embora. Ficou ali, na praça, perscrutando o curioso objeto que trepava por cima de uma grápia.

Chispou os olhos mais uma vez e concluiu, agora confiante:


— Sim, sim... drone!


O senhorzinho ao seu lado contorceu as têmporas, sem entender (estava ressentido pelo fim da partida). Acendeu um cigarro, soprou um anel de fumaça e olhou para o céu também.


— Nada disso — replicou. — É pássaro.


E deu outro trago no cigarro.


O dono dos botões não gostou nada daquilo.


— Negativo. É um drone, seu velho bobo!


Uma mulher de meia idade, que passeava com seu filhinho na praça, teve a atenção atraída pela dupla de damistas que discutia e apontava para o céu.


— Que é? — quis saber.


Meio assustado, meio seduzido pela voz repentina de mulher, o damista mais velho, que se orgulhava de ter sido um despedaçador de corações na juventude, deixou o cigarro cair, boquiaberto. E quis mostrar que era mais interessante e moderno do que aparentava. Encorpou a voz e respondeu:


Drone — e foi provavelmente a primeira vez que disse a palavra na vida.


Não fazia ideia do que era um drone, mas agora parecia muito convicto de que se tratava de um – e não de um pássaro, como acabara de redarguir ao amigo. Pássaros não o fariam parecer interessante. Mas um drone…


— Drone? — a mulher soltou um gritinho e saiu em disparada com seu filho.


Os dois damistas acharam aquela reação um pouco exagerada, mas nenhum deles tinha assistido o noticiário da noite anterior com a reportagem sobre o “drone letal” que matara dezenas no Oriente Médio.


A fuga da mulher, entretanto, não passou despercebida pelos que passeavam pela praça. Um casal de jovens interrompeu o cooper matinal para conferir o que estava acontecendo. Uma freira sacudiu o hábito e usou seu exemplar da Bíblia como viseira para se proteger do sol enquanto vasculhava os céus. As crianças abandonaram o parquinho e marcharam, ululando, para investigar a misteriosa figura que sobrevoava a árvore.


Assim, num crescendo incontrolável, o burburinho na praça foi aumentando e mais gente foi se aglomerando ao esquadrão de curiosos em torno das grápias a fim de decifrar a natureza da coisa ou criatura que se colocava entre eles e o sol gelado de inverno.


Um homem com inclinação para o drama perguntou:


— Meu Deus, o que é isto?


Ao que o velho damista respondeu:


— Drone!


A freira cobriu a boca, horrorizada. As crianças saíram correndo, tresloucadas, para espalhar a terrível notícia. Maridos abandonaram as esposas na praça. Um tumulto começou. Os medrosos começaram a fugir, os curiosos não paravam de chegar. Num piscar de olhos, uma multidão havia tomado a praça em torno dos dois damistas que contemplavam a sombra disforme no céu.


Muitas coisas foram ditas na praça naquela manhã: espionagem, atentado terrorista, ameaça satânica… e a maioria das exclamações de pavor incluía a palavra “drone”.


Uma repórter atravessou sinuosamente a multidão, mandando aos berros que todos saíssem da sua frente e abrissem caminho para o cameraman registrar os xingamentos em latim de um padre que apontava um crucifixo para o céu. A polícia foi uma das últimas a chegar. Homens de farda gritaram palavras de ordem e tentaram, sem sucesso, dispersar a população.


— É para a segurança de todos — garantiu o grandão, e acertou com o cassetete a cabeça de um senhorzinho encurvado e surdo que não ouviu a ordem.


A repórter bateu o pé e disse que não saía. Mas aí tomaram-lhe o microfone e ninguém ouviu quando ela falou do objeto não identificado no céu.


— Protejam as cabeças! — berrava um vendedor ambulante de capacetes.


— Não há ameaça de bomba — disse uma mulher cética, recusando a oferta do comerciante. Mas logo em seguida algo atingiu-lhe a cabeça.


Depois, vieram as ambulâncias, os helicópteros e a imprensa internacional.


A força especial foi designada para a missão e, finalmente, as autoridades conseguiram apreender o suspeito objeto no céu.


— Um drone — revelou o comandante num relato lacônico que viria a ser repetido muitas e muitas vezes nos noticiários dos dias seguintes.


No cair da noite, a praça ficou vazia… exceto pelos dois damistas. Contemplavam o céu do crepúsculo. O mais velho fumava um cigarro. Espiralou um anel de fumaça e observou o estrago. Havia no chão sangue, lixo, estilhaços e os últimos galhos mortais da grápia que a força especial derrubara “para ampliar o campo de visão e apanhar o objeto”.


— É — o senhorzinho murmurou para o companheiro —, drones são mesmo perigosos.

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